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17.JUL.2025

IA no mercado editorial: entre a ferramenta e a autoria original

A Inteligência Artificial já é uma realidade no mercado editorial e uma realidade que provoca diferentes sentimentos. Mais do que ameaças ou encantamentos apressados, ela impõe uma reflexão: onde começa e onde termina o papel do autor humano? Até onde a tecnologia colabora e a partir de que ponto ela compromete? Esses e outros dilemas ganharam força com o recente cancelamento do Prêmio Literário da Editora Kotter, em Curitiba, após a detecção de obras geradas por IA entre os finalistas.

Para Lilian Cardoso, fundadora da LC Comunicação e uma das principais vozes do mercado editorial brasileiro, o episódio é emblemático. “Foi muito simbólico esse caso. Um prêmio cancelado porque descobriram que tinham obras feitas por IA. A máquina está muito avançada, ela pode muito bem adotar o estilo de escrita da pessoa, mas ela é perfeita demais e o ser humano erra. É possível identificar quando um texto é feito a atacado por IA”, alerta. 

Lilian, que lidera uma agência voltada à assessoria e ao Marketing de autores e editoras, vê a IA como uma ferramenta poderosa, mas com limites claros. “Eu digo que tem três tipos de autor na era da IA: o que não usa, o que usa parcialmente e o que entrega a história inteira. Se o uso é para destravar uma ideia, é um ponto. Se escorar na ferramenta para uma ideia e concepção é outra”, afirmou ao Mundo do Marketing.

 

Ferramenta ou autoria?

Bruno Trindade Ruiz, sócio e diretor da b+ca, reforça essa separação entre uso operacional e autoria criativa. “Na nossa área, a personalização e a exclusividade do serviço importam muito. Criamos para artistas, eventos e marcas que se expressam por meio da sua imagem e personalidade”, explica.

Na b+ca, a IA é usada com pragmatismo: transcrição automática de entrevistas, geração de legendas, tradução de conteúdos com agilidade e precisão, além de restauração de materiais em baixa resolução. “São usos que envolvem volume e repetição, onde o tempo faz a diferença, não para funções criativas. Não queremos abrir mão disso”, contou Bruno em entrevista ao Mundo do Marketing. 

Mas como usar a Inteligência Artificial? O sócio e diretor da b+ca afirma que a empresa tem posição clara. “A IA é uma aliada operacional, não criativa. Usamos para acelerar processos ou organizar dados, mas a construção estética, narrativa e emocional é sempre feita por pessoas e acreditamos que esse é o caminho”, reforça.

 

O papel do leitor como curador

Para Lilian, a melhor curadoria ainda vem de quem lê. “O leitor perceberá. Vai ler e dizer: ‘isso aqui é uma mistura de Augusto Cury com Portela’. A IA entrega algo certinho demais, mas quando lemos um autor de verdade, reconhecemos. A originalidade, o ritmo, a cadência são marcas de uma literatura original”, defende.

Para a executiva, o leitor não se contentará com obras rasas, uma vez que a IA realiza um apanhado do que existe e não se aprofunda em temas originais. Ela exemplifica com um autor nacional de seu catálogo. “Quando peguei o livro do Zé Alonso, parecia que ele estava conversando comigo. Era exatamente isso que eu queria que acontecesse. Queremos ler um novo Saramago, um novo ‘Torto Arado’”, pontua.

Apesar disso, Lilian reconhece o papel democrático da ferramenta de dar mais confiança para quem nunca escreveu ou é independente. “Existem pessoas com histórias geniais, mas que travam com medo de errar o português. A IA pode ajudar a destravar, por exemplo. O que não pode é a tecnologia virar a autora no lugar da pessoa”, afirmou.

 

IA e produção em escala

O uso de IA já está consolidado em áreas técnicas do processo editorial. Traduções simples, revisões básicas e até diagramações padronizadas estão sendo assumidas por máquinas. “A diagramação básica, hoje, um autor independente já faz sozinho. Além disso, editoras que publicam 20, 30 livros por mês precisam reduzir custos. A revisão, a tradução, já estão sendo substituídas em parte, mas existe algo no fator humano que a máquina não faz, como traduzir termos específicos de um idioma ou captar o sentido do autor em uma frase específica que não cabe tradução literal”, explica Lilian.

Bruno concorda com o avanço da IA em áreas técnicas, mas faz um alerta. “Um algoritmo pode organizar, acelerar, replicar e sugerir. Não pode, no entanto, criar sentido como um humano. Principalmente quando falamos de cultura e música, o que conecta não é apenas a informação, mas a intenção por trás de uma palavra ou um silêncio. O futuro é da colaboração: profissionais criativos que sabem usar IA como extensão do seu repertório, não como atalho”, afirmou.

Lilian afirma que há uma tensão em relação à produtividade, que muitas pessoas acabam deixando de notar. “Precisamos usar a IA para aliviar a sobrecarga, mas precisamos defender nosso diferencial. Um revisor tem que saber explicar por que ele é melhor. Um tradutor tem que saber se divulgar onde a IA não alcança. Porque se não souber, será substituído”, diz Lilian.

A fundadora da LC afirma também que não basta só produzir conteúdo. “Estamos correndo o risco de escrever para máquinas. Posts gerados por IA, lidos por IA. Livros escritos por IA, recomendados por algoritmos de IA. Onde cabe o humano nessa história?”, reflete.

 

Transparência e ética

Bruno defende a transparência como princípio norteador. “Fazer uso da IA para revisar, adaptar ou organizar conteúdo é uma coisa. Assinar um projeto feito 100% por IA, sem clareza, é outra. O YouTube desmonetizou recentemente vídeos feitos com IA e sem curadoria humana. Isso mostra que o mercado começa a reconhecer o valor da criação humana”, lembrou.

Para ele, a chave é a consciência. “O uso legal e ético da IA depende da transparência e do entendimento de que, mesmo com IA, ainda somos nós que criamos o sentido das coisas”, avalia.

Apesar dos rankings da Amazon estarem sempre com livros de rápida e fácil absorção,  Lilian explica que a solução é investir em uma educação e formação de leitores para outros gêneros, para que haja oportunidade para todos. 

“Precisamos formar mais leitores, porque senão, não importa se o livro é escrito por IA ou por humano: quem lerá é outra IA. O editor quer manter uma boa equipe, mas precisa que os livros vendam. E o autor, se está sozinho, tem que escolher suas batalhas”, afirmou.

Mas ela também acredita em caminhos paralelos. “Tem espaço para os dois mundos. A IA assumirá funções básicas, sim. Mas os projetos mais cuidadosos, com capricho, com arte, com propósito, ainda serão humanos. Temos que buscar o espaço onde só nós sabemos fazer”, afirma.

Questionada se chegará o dia em que os prêmios literários terão a categoria “criação por IA”, Lilian é enfática. “A IA não deixará de ser utilizada, então o mercado terá que se adaptar de alguma forma. Essa pode ser uma solução? Talvez, mas veremos cada vez mais uma valorização das obras originais, diagramações originais que nenhuma máquina pode substituir. Porque nem tudo é sobre custo. O criativo sempre se sobrepõe”, conclui.

Via Mundo do Marketing

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